Convidei o Tiago a contar uma história da sua vida de Guia, ele respondeu assim:
"A Cátia contactou-me e perguntou-me se estaria interessado em escrever algo para o blog dela. Eu aceitei com alguma relutância diga-se, avisei que não percebo muito de escrita, mas que iria tentar ter um momento de inspiração.
Ela responde "hehe consegues sim, fico à espera ". Os editores são sempre assim, fazem sempre os autores acreditarem que eles acreditam neles...
Cátia tenho o e-mail guardado e como tal a responsabilidade dos próximos parágrafos é tua!
Penso num tema relacionado com a vida de Guia e começo a fazer rewind.
Rebobino os últimos anos da minha vida e decido escolher um dos tours que recordo amiúde.
Decidi escrever sobre um dos clientes que mais me marcou, dos mais interessantes, dos mais interessados que tive na minha curta carreira.
Como diria uma professora (possivelmente a melhor) que tive "Uma pessoa só é interessante se tiver interesses".
Fui contractado para fazer 3 dias de tour privado para 3 pessoas na área de Lisboa.
A "Janet" (nome fictício) é praticamente invisual e vem acompanhada por dois amigos.
A história destes três amigos por si só, já valia uma reportagem, mas das boas, daquelas feitas por jornalistas.
A Janet ficou invisual aos 35 anos fruto de um procedimento médico errado que lhe provocou uma hemorragia cerebral, meses em coma, e quando acordou não via. Era uma das mais brilhantes advogadas do seu Estado.
Tenta continuar a carreira mas não consegue. A frustração acumula-se, decide mudar, decide adaptar-se à nova realidade.
Nesse processo, adquire um cão-guia e é aí que conhece os seus dois amigos.
Não, eles não são cegos, eles adoptaram um cão invisual no mesmo centro que forneceu o cão-guia dela. São eles os "olhos" do cachorro que adoptaram. E é aí que as suas vidas se cruzam até aos dias de hoje (já passaram mais de 18 anos).
Com a indemnização a que teve direito decide conhecer o mundo "enquanto posso".
No decorrer desses três dias visitámos Lisboa e Sintra. A Janet absorve tudo, tudo o que lhe digo, tudo o que "vê" e "vê" muito mais do que a maioria dos meus clientes. Pergunta, relaciona, faz analogias, tem uma curiosidade infinita.
No Palácio da Vila toca nos azulejos, sente-os, imagina as suas formas, tira fotografias para numa televisão especial com muita definição e com o auxílio de uma lente (uma lupa gigante) aumentar as fotografias até lhe permitir ver alguns contornos e manchas (ela ainda vê 5% de um olho mas está a degenerar).
No decorrer do tour por vezes paramos num local e ficamos em silêncio, só a escutar o som do eléctrico que passa, os pregões no mercado, ou a sentir a brisa e o cheiro da maresia em Cascais. É toda uma experiência sensorial.
No decorrer de uma conversa descobre que tenho uma labradora (raça do seu cão-guia que tinha morrido uns meses antes da viagem) e insiste que traga a cadela para o tour do 2º dia. Explico-lhe que não é possível porque questões de ética profissional, que ela não está treinada, não é cão-guia e jamais poderia entrar num monumento em Sintra. Ela insiste, diz que vai comprar um arnês de cão-guia para ela e eu só consigo demover a sua vontade férrea, brincando com ela e dizendo-lhe que na Sala dos Cisnes há umas peças de cerâmica da China em forma de animais e a minha cadela como labradora poderia ingerir uma daquelas cabeças de javali do séc. XVIII e aquilo ainda é caro.
No último dia decidimos acabar o tour de Sintra em Cascais e almoçar por lá. Como não tenho tour à tarde, falo com os seus amigos e combino ir buscar a cadela enquanto comem a sobremesa. Quando ela sai do restaurante estamos à sua espera e foi possivelmente o melhor momento dos dias que passou comigo. A alegria dela é inesquecível... São aqueles pequenos prazeres da vida.
Para mim foi um privilégio ter sido o seu guia.
Foi um enorme desafio porque a descrição tem de ser muito detalhada, muito precisa em termos técnicos, a atenção à segurança reforçada, mas o que se ganha no final de um tour destes não tem preço.
Nos dias em que estou mais cansado, em que há alguma frustração acumulada por ter tido um grupo que não consigo fazer ter interesse pelo que lhes mostro, é da Janet que me lembro. São pessoas como ela que me fazem pensar que os dias não serão todos maus, que a maioria são bons e outros serão espectaculares.
PS: O background do meu tablet ainda é a foto tirada pela "Janet" à porta do restaurante em Cascais.
Tiago Viana"