Um tesouro elaborado por artistas anônimas, uma tradição em risco de desaparecer.
O tesouro de que vos falo hoje tem um valor incalculável porque implica décadas de sabedoria, cultura, tradição e intercâmbio com outras nacionalidades.
Aceitei o desafio da Cátia para vos falar sobre o Bordado Madeira, não só porque gosto muito de artesanato, mas também,porque para valorizar é preciso conhecer e esta arte merece ser bem apreciada.
O bordado foi outrora uma importante fonte de rendimentos na Ilha da Madeira, com papel de relevo na exportação e ainda mais importante na economia familiar.
Lembro-me muito bem destas expressões da minha infância e juventude: “comprei com o dinheiro do bordado”, “bordar para o dote” e ainda, da ameaça das mães às jovens em idade escolar...“se não passares de ano, vens para casa bordar”.
Refiro-me a uma época em que muitas mulheres, após as lides domésticas, dedicavam o seu tempo a bordar. Juntavam-se em grupo incluindo crianças pequenas, e o bordar em conjunto, além do exercício de uma atividade, representava o momento oportuno do dia, para um prazeroso convívio e uma certa tagarelice, em que a “bilhardice”, regionalismo que significa falar sobre faits-divers, normalmente sobre a vida dos outros, ocorria com certa naturalidade.
Muitas vezes repartiam e partilhavam o trabalho entre si, não só para acelerar a conclusão dos mesmos, mas também porque algumas dominavam melhor certas técnicas do bordado (pontos) do que outras. Nalguns casos concretos, o trabalho de uma só toalha mais elaborada, demoraria anos para ser totalmente finalizado, se fosse bordado apenas por uma só pessoa.
São muitas as expressões e nomes para as várias técnicas usados no bordado madeira; menciono apenas algumas que a minha memória, das conversas da minha avó com as minhas tias, ainda mantém viva: caseado, garanitos, cavacas, ilhós, viúvas, ponto bastido, ponto de corda, ponto rendado, ponto francês, ponto atrás, ponto cordão e o ponto de sombra.
Entre as diversas influências: rendas da Inglaterra, Milão, Bruges; especial destaque para o Richelieu, influência francesa que basicamente, consiste numa composição de pontos e desenhos com um vazio de recortes para realçar a beleza das figuras bordadas.
À semelhança de outras crianças, ainda aprendi com a minha avó e a minha tia, a bordar num “paninho” os pontos básicos como os garanitos, o ponto de corda, o ponto de sombra e o ponto francês.
O ensino desta arte remonta aos conventos onde as jovens abastadas desenvolviam os talentos em várias vertentes, incluindo bordar.
Só no Séc. XIX é que a sua comercialização e exportação ganhou grande impulso, depois da jovem inglesa, Miss Phelps, seduzida pela qualidade e perfeição dos bordados, levar com ela alguns exemplares de trabalhos bordados para “as terras de sua majestade”. O sucesso, pela sua beleza e qualidade, originou inúmeras encomendas.
Iniciou-se então a exportação de bordado, de forma crescente e abrangente para vários mercados, tendo constituído até um passado bem recente, uma importante e significativa fonte de rendimentos para todos os agentes envolvidos.
Antes de chegar às mãos das bordadeiras, há todo um trabalho de “bastidores”, uma espécie de linha de conceção e montagem. Refiro-me à elaboração do desenho, à estampagem em tecido devidamente selecionado (linho, algodão, organza e seda) e ao cálculo do preço a pagar às artesãs.
O cálculo da remuneração das bordadeiras, obedece a um complexo sistema métrico, baseado no número de pontos industriais, apurados por equivalência aos pontos manuais executados. Os valores de pontos industriais de determinada artesã, além de necessários para o cálculo do pagamento do trabalho, têm também implicação nas condições para a sua aposentação.
Após esta fase na “fábrica” (designação para o local onde decorre o trabalho atrás referido); os tecidos são então enviados para as bordadeiras acompanhados de uma cópia do desenho e indicação dos pontos e cores a utilizar.
É nesta altura que surge o trabalho da “agente” pessoa responsável pela distribuição dos bordados e respetiva recolha. É também a “agente” que procede ao pagamentos dos trabalhos às bordadeiras, em resumo, a agente é o intermediário entre a “fábrica” e as artesãs e poderá, ela própria, também bordar ; ou não.
De novo, no ponto de origem/fábrica, a preceder a comercialização/exportação; o trabalho consiste entāo nos acabamentos: lavagem, recorte, passagem a ferro e controlo de qualidade.
Antes de receber o selo de autenticidade (holograma que garante a qualidade do trabalho artesanal) as peças são submetidas a uma apreciação meticulosa no IVTAM (Instituto do Vinho, Bordado e Artesanato da Madeira) e é imperativo que o bordado preencha os requisitos de qualidade para receber o holograma que o certifica, pois é a qualidade que o distingue.
Actualmente, os desafios são gigantescos para que o bordado continue a ocupar um lugar de destaque nos mercados:
Há escassez de artesãs que dominem esta arte, a vida moderna dificulta o ensino do bordado da forma tradicional (avós/netas), a sociedade do consumo descartável e a concorrência dos bordados não artesanais, sobretudo de origem chinesa, são apenas alguns dos problemas que afetam o sector.
Em resposta à necessidade de reinventar e procurar novos mercados, o Instituto e o sector privado têm vindo a reagir de forma positiva e criativa com campanhas de marketing inovadoras e bastante abrangentes.
O bordado reinventa-se e adapta-se ao presente, com novas peças e desenhos mais simples e modernos como individuais para mesa, saquinhos de aromas, marcadores de livros e até, últimamente máscaras bordadas.
Uma, das várias, iniciativas da empresa Bordal para expor e valorizar o Bordado - a exposição de Mesas de Natal, que consiste em mesas decoradas por estilistas, grupos hoteleiros, empresas e associações usando o bordado como elemento base, passou a integrar o programa oficial das festas de Natal da Madeira.
Na exposição do ano passado uma das mesas foi decorada por duas colegas em representação da classe (SNATTI Madeira).
(exposição de 2019, decoradas por Ana Isabel Faria e Leonor Araujo em representação do SNATTI)
A indumentária da fadista madeirense Beatriz Silva, no seu concerto no Município de Câmara de Lobos no final do passado mês de Outubro, também ficou a cargo desta empresa.
Dica dentro da dica: Beatriz Silva – fadista profissional, um novo talento madeirense ...vale bem a pena ouvir-la com atençāo.
O trabalho de alguns estilistas, também se tem revelado um importante contributo para manter viva esta arte, através de novas abordagens na aplicação do Bordado Madeira às suas criações.
Especial destaque para o nome do estilista Hugo Santos, pois os seus trabalhos são quase sempre indossiáveis do Bordado Madeira.
Curiosidade: Em 2014 o Bordado Madeira marcou presença numa das passerelas mais importantes do mundo da moda em Paris, através da Casa Chanel, que para o efeito encomendou 20 golas bordadas com designs da Empresa Bordal e da própria Chanel.
Concluo a minha dica com um apelo para que valorizem o que é nosso, genuino e Português.
Neste Natal, para quem visita ou resida na Madeira, apreciem a sempre deslumbrante exposição de mesas bordadas da Bordal, na rua Fernão Ornelas no Funchal, e já agora; aproveitem a oportunidade para adquirir algumas prendinhas.
FELIZ NATAL!
Rosa Figueiredo
As Dicas da Rosa são uma delícia, não são?
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